Goleiro Bruno: ‘Presídios comuns são escolas do crime’
Preso desde julho de 2010, o ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes já passou por duas das maiores penitenciárias do país. Há um ano e quatro meses, ele foi transferido para um presídio diferente, em Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Lá, ele faz cursos, trabalha vigiando os colegas e carrega as chaves da própria cela.
VEJA visitou a unidade e conversou com outrora ídolo de uma das maiores torcidas do país. Ele diz que no novo presídio, administrado por uma organização não-governamental, pôde “voltar a sonhar”. Bruno não sabe quando ganhará de novo a liberdade – diz até que ainda não está preparado para voltar ao convívio social -, mas tem certeza de uma coisa: o sistema convencional, em vez de recuperar os presos, acaba por torná-los ainda mais violentos. Ele espera cumprir pena no semiaberto a partir do início do ano que vem.
O que mudou para você depois de vir para cá? A Apac é uma obra de Deus: devolveu a minha dignidade, restituiu a minha família, me deu o direito de voltar a sonhar, a recomeçar a minha vida novamente, tudo aquilo que o sistema convencional me tirou.
Por que o sistema convencional é tão ruim? Eu tive o desprazer de ficar num sistema muito bruto, o sistema de segurança máxima, que é o Nelson Hungria, e depois passei por outro sistema de segurança máxima, o Francisco Sá, além de ter passado pelo Complexo de Bangu II, no Rio de Janeiro. A diferença é muito grande. O sistema convencional não recupera ninguém.
Se tivesse continuado no presídio Nelson Hungria, o que teria ocorrido com sua vida? Se eu tivesse continuado no sistema convencional? O Bruno [aqui o ex-goleiro se refere a si mesmo em terceira pessoa] ia sair de lá uma pessoa muito pior do que quando entrou. O sistema convencional hoje é uma escola para o crime. Eu não era bandido, o bandido vive do crime. Eu me tornei criminoso a partir do momento em que cometi um crime. Quando fui para o sistema convencional, sendo um criminoso por ter cometido um crime, não vivendo do crime, eu estava na faculdade para se tornar um bandido.
Você estava na ‘faculdade de bandidagem’? Sim, porque o sistema é muito bruto. Os agentes penitenciários são covardes. Eles acham que, para recuperar uma pessoa, têm de agredir aquela pessoa, seja de forma física ou mental.
Você acompanhou as notícias sobre o massacre de mais de 100 presos em Manaus e Roraima? Aquilo mexeu com muita gente. Eu me coloquei no lugar daqueles presos, se eu estivesse ali pagando tantos anos de pena, minha mãe me esperando em casa… Imagine a mãe esperando seu filho voltar para casa. A culpa é de nós todos. Parte da culpa é dos próprios governantes, que acham que tudo está normal.
Quanto tempo ainda falta para você ir para o regime semiaberto? É uma pergunta interessante. Sou mais uma pessoa entre milhões e milhões de presos que esperam uma resposta da Justiça. Eu não tenho uma data definida para te falar se vou sair daqui a um ano, dois anos, três anos. Eu não sei. Fui condenado em 2013 e até hoje está em trânsito a apelação e ainda não obtive resposta. Imagine se eu não tivesse uma cabeça boa? Como eu estaria no sistema convencional? É revoltante. Na Apac é diferente. Você tem acompanhamento, pessoas que acreditam em você, que apostam em você. A Apac muda alguém? Não, mas ela te dá as ferramentas necessárias para a mudança da pessoa.
Você casou recentemente com uma dentista dentro da prisão… Eu a Ingrid já estávamos juntos quando tudo aconteceu. Meu casamento foi dentro da Apac, no ano passado. Tenho duas filhas do meu primeiro casamento. A Apac me proporcionou o direito de visitar minhas filhas, que o sistema comum me tirou. Consigo ver minhas filhas, minha mãe, que está com 84 anos e é cadeirante. Tenho uma família. É inaceitável o que fiz, mas a minha família está me ajudando a me reerguer. O cantor Belo passou por isso, tem uma música dele que fala: ‘Para que condenar, se é mais fácil perdoar?’. Muitos leigos falam: ‘O cara tem que morrer lá dentro’.
Você ficou quanto tempo sem ver suas filhas? Fiquei três anos e meio sem ver minhas filhas e dois anos sem ver minha mãe. Como eu não queria que minhas filhas participassem de visitas sociais nos finais de semana, para não ficarem psicologicamente abaladas, pedi visitas assistidas uma vez por mês, de 20 minutos no máximo. Não deixaram eu vê-las mais. No sistema convencional os agentes me perseguiam, faziam piadinhas, me chamavam pelo número que eu tinha nas costas, o 326944. Se eu falar para você que estou pronto para enfrentar a sociedade, eu vou ser mentiroso. Mas estou me preparando para isso.
Eu ouvi que aqui você não joga mais como goleiro. Por quê? Sempre tive facilidade de jogar na linha, desde a época do Flamengo. Iniciei minha carreira como atacante. Não me arrisco no gol aqui na Apac porque já servi de escada para muita gente. Mesmo sendo na base da brincadeira, não quero dar essa brecha para ninguém, prefiro jogar na linha e manter a forma física, queimar a gordura localizada. Olha só, eu tomo um gol de um menino desses aí e ele vai falar: ‘fiz um gol no Bruno’ (risos). Eles tiram a maior onda. Teve um dia que fiquei no gol e não peguei nenhum pênalti. Um deles falou assim: ‘você não pegava nada não, os caras é que não batiam bem’. Eu tinha fama de pegador de pênalti. Falei: ‘quer sabe de uma coisa, não vou no gol mais não, eu quero é fazer gol’.
Você já está numa idade na qual muitos atletas já estão se aposentando. Quais são seus planos para o futuro? Acho que todo homem tem que sonhar. Sei que a idade está contra o relógio, mas eu sonho. Engraçado que em Ribeirão das Neves, a cidade onde nasci e fui criado, só existiam sonhos também. E eu sonhei e consegui realizar esse sonho. Hoje não é diferente. Eu pego a cadeia não como uma punição, mas como um aprendizado de vida. Eu vou sair daqui muito mais maduro, um pai responsável, um marido amado, um filho obediente.
O fato de você ser conhecido ajuda ou atrapalha? Tudo é mais difícil. Tudo que é direito seu, direito legal, às vezes a pessoa interpreta de outra forma. O sistema te pune, não te dá nada. Vou te dar um exemplo simples que aconteceu comigo. Uma vez o cara passou e levou uma garrafa de água gelada para a cela. Passando, eu pedi a mesma coisa para o coordenador, mas ele não deixou, porque eu era o Bruno. É muito desumano.
Você está aproveitando o tempo aqui dentro para fazer cursos, para ler alguma coisa? Já fiz seis cursos aqui. Fiz cursos de jardineiro, de solda, de pedreiro. Fiz cursos profissionalizantes. Tenho um bocado de certificados. Temos que ficar com a mente aberta. Se não der certo numa situação, a gente vai em outra. Mas eu não vejo o Bruno fora do mundo do futebol. Eu vou voltar. Se não for como atleta, vai ser como preparador físico, treinador de goleiros, não sei. Se Deus abrir as portas, tenho força. A vontade para dar a volta por cima supera qualquer crítica.
Você fala muito em Deus. No passado você não tinha essa mesma fé? Eu fui criado no berço evangélico. Minha família era toda evangélica. Mas quando eu cheguei onde tinha que chegar, eu me afastei de Deus. Mas no fundo eu sempre soube que foi Deus quem me colocou ali. Só que, em vez de fazer as coisas de Deus, simplesmente me afastei dele. E aí eu comecei a errar, e errar muito, errar feio. Quantas e quantas vezes meus primos, ex-presidiários, estiveram na minha casa e eu mandava a segurança ficar de olho neles? Eu estava cego e às vezes não percebia. Hoje, não. Vejo todo mundo com outro olhar, que se chama igualdade.
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