Papa vai à Hungria de olho em escalada do autoritarismo na região
Foto: Reprodução
Um papa não viaja à toa. E Francisco parece empenhado em voltar a mexer peças, espalhando suas mensagens, no xadrez da geopolítica. No domingo (12) ele inicia uma viagem, que deve durar até a quarta-feira (15), a dois países da antiga Cortina de Ferro: Hungria e Eslováquia.
Será o segundo tour papal em meio à pandemia, depois de uma visita ao Iraque no primeiro semestre -2020, por causa do coronavírus, foi o primeiro ano sem nenhuma viagem internacional de um pontífice desde 1978. Se já há um peso importante na retomada dos deslocamentos do líder da Igreja Católica, mesmo que a Covid-19 ainda não tenha sido vencida, os destinos da vez amplificam os significados.
Historicamente, tanto Hungria quanto Eslováquia conservam maioria católica na população (dados da Santa Sé indicam, respectivamente, 61% e 74% de adeptos nesses países), mesmo que a religião tenha sido perseguida durante o período de domínio socialista. O primeiro ainda vive um momento particular, sob o contexto da ascensão global da extrema direita, movimento do qual o primeiro-ministro Viktor Orbán é um dos principais expoentes -num governo que exacerba nacionalismo dizendo defender, entre outros, os valores cristãos.
“Qualquer viagem do papa é sempre religiosa e política. Ele não viaja só com fins religiosos, mas também como chefe de Estado”, diz o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
“Francisco é um homem de certa idade [completa 85 anos em dezembro], enfrenta problemas de saúde [passou por uma cirurgia no intestino em julho], tem enfrentado grupos da Igreja extremamente conservadores e faz um papado progressista, tentando colocar, ao seu jeitão, o dedo na ferida. Ele parece saber que não tem muito tempo e usa esse senso de urgência para escolher, com visão estratégica, as regiões para suas visitas apostólicas.”
Doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o vaticanista Filipe Domingues avalia que “falar de Deus nessa parte do mundo tem um peso especial”, dados o passado de repressão e perseguições e o contexto do domínio socialista. “Quando Francisco fala de religião, de fé, também está falando de política. Fé e política, nessa região, onde houve falta de liberdade religiosa, sempre vão estar juntas, e é inevitável levar em conta o contexto atual.”
Um contexto em que o cerco a liberdades civis e instituições não vem mais da esquerda socialista, como no século 20, mas do extremismo de direita protagonizado por Orbán.
“Francisco busca dar um recado muito claro sobre posições totalitárias quando escolhe visitar um país que vive um endurecimento de regime, com postura tirânica [do premiê]”, afirma Moraes.
No último domingo (5), após a oração do Angelus, o papa falou sobre o que será sua 34ª viagem internacional –somando 52 países em seu passaporte pontifício. “Confio as visitas que realizarei à intercessão de tantos heroicos confessores da fé que, nesses lugares, deram testemunho do Evangelho no meio da hostilidade e das perseguições. Que eles ajudem a Europa a dar testemunho também hoje, não tanto com palavras, mas sobretudo com ações, com obras de misericórdia e acolhimento”, disse.
A primeira parada de Francisco será na capital húngara, Budapeste, para celebrar a missa de encerramento do Congresso Eucarístico Internacional. De lá parte para o país vizinho, onde deve visitar as cidades de Bratislava, Presov, Kosice e Sastin. Antes de receber o argentino, a Hungria foi destino de duas visitas papais, e a Eslováquia, de três (uma delas, quando ainda era parte da Tchecoslováquia) –todas de João Paulo 2º (1920-2005).
Os excessos totalitários do regime soviético deixaram cicatrizes no povo católico da região. De acordo com levantamento de Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante o período socialista cerca de 30 padres húngaros foram assassinados e 14 mil religiosos de ambos os sexos acabaram presos em campos de concentração.
Na Eslováquia, o quadro de perseguição foi similar. Bispo-auxiliar de Trnava, Michal Buzálka (1885-1961) foi preso e assassinado pelo regime totalitário. No período, igrejas funcionaram na clandestinidade, com celebrações às escondidas, seminários foram proibidos e novos sacerdotes acabaram sendo formados em grupos de estudos que ocorriam longe das vistas das autoridades.
Para João Paulo 2º, visitar esses locais marcava uma posição no contexto da reabertura da Cortina de Ferro; o polonês criticava os abusos do totalitarismo de esquerda. Para Francisco, o cenário de extremismo guarda semelhanças, mas do lado oposto; o argentino preocupa-se com o crescimento do totalitarismo de direita.
“Em suas viagens, ele não vai à ‘casa das pessoas’ e joga na cara o que está de errado. Mas deve, sim, falar dos problemas, sinalizar para o avanço do autoritarismo, o excesso de nacionalismo”, afirma Domingues. Dessa forma, o pontífice deve recuperar a mensagem central da encíclica “Fratelli Tutti”, de 2020. “A ideia de se abrir para o outro, de resolver juntos as questões.”
O vaticanista concorda com a visão de que, mais do que o discurso, o gesto de escolher visitar esses países já embute uma mensagem por parte de Francisco. “Ele deve mostrar que todas as formas de autoritarismo são ruins, tanto o de direita atual quanto o de esquerda que houve no passado. Autoritarismo não é compatível com a mensagem do Evangelho, isso está claro para a Igreja, como ensinamento, como magistério.”
Para os especialistas, ao ir ao encontro “dos que sofreram as perseguições”, Francisco imprime seu recado, de que não é um papa de grandes teorias, mas do abraço pastoral.
“Quando os valores de liberdade são ameaçados, como na Hungria, por um governo de ultradireita, radical, a presença do papa faz toda a diferença”, afirma Moraes. “E no ambiente europeu, que vive um processo galopante de secularização, com a religião perdendo força, é estratégico para a Igreja que o papa visite uma região com alta proporção de católicos.” POR FOLHAPRESS
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