Ainda há Juízes em Natal?
Autor: Salomão Gurgel Pinheiro
(Mas o moleiro de Sans-souci era mais afirmativo: Ainda há juízes em Berlim!)
Confesso que não tenho a mesma convicção do moleiro de Sans Souci, que desafiou Frederico II, rei da Prússia, confiando, unicamente, nos “juízes de Berlim”, que, então, faziam prevalecer a Lei, mesmo diante das investidas dos poderosos.
Acho que a maioria de vocês já leu o poema de François Andrieux, onde se narra a história em que aquele soberano decide construir para si e seus amigos um local de lazer e prazeres finos.
No terreno, onde se construiria a área de lazer do rei, havia um moinho, pertencente ao chamado moleiro de Sans-souci (“sem preocupação”). Este vivia uma vida humilde, produzindo, no moinho, a farinha, cuja venda garantia a sua sobrevivência e de sua família, uma tradição que já vinha de pai para filho.
Irritado com a negativa do moleiro em lhe vender o terreno, o Rei ameaçou: “Você bem sabe que, mesmo que não me venda a terra, eu, como rei, poderia tomá-la sem nada lhe pagar”. O moleiro, então retrucou com a famosa frase: “O senhor? Tomar-me o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim!”
Pois, bem! Esta confiança na Supremacia da Lei, que animava os mais humildes diante da soberba dos poderosos, fazia com que os cidadãos do andar debaixo resistissem às pretensões injustas e confiassem que a Justiça seria feita, mesmo contra os poderosos.
É claro que as coisas, os costumes, os valores, a natureza dos seres humanos… mudaram! Aquele sonho da Justiça, acima do Humilde e do Poderoso para fazer valer o princípio pétreo de que todos deveríamos nos curvar diante das Leis, já não se sonha mais. Antes, era uma luta de todos por Liberdade, Igualdade e Fraternidade! Saíamos dos regimes déspotas e opressores. A Justiça se firmava ao lado dos oprimidos e dos que derramavam seu sangue em nome da Liberdade. Pelo menos os que eram iluminados pelo resplendor do Humanismo!
Hoje, na fase bárbara e cruel do capitalismo neoliberal, a Justiça se transforma, infernalmente, nesse instrumento perverso de aplicação selvagem das Leis, criadas por esses poderosos usurpadores das riquezas sociais e, rapidamente, todo esse arcabouço jurídico, que deveria proteger os despossuídos de direitos, se transforma numa verdadeira ditadura, onde a razão não é sentida, nem a lógica é levada em consideração.
Em 2010, prefeito eleito de Janduis, pequena e pobre cidade do interior do Rio Grande do Norte, vivenciando uma seca de 3 anos, com salários de funcionários atrasados, sem dispor de 50 mil reais para fazer um Concurso Público, cortando salário do prefeito, do vice e dos secretários, contratei, através de Lei Municipal, aprovada pela Câmara Municipal, médicos, enfermeiros, professores e outros técnicos para suprirem os serviços públicos municipais… Não poderia agir de outra maneira. Assumi o compromisso de fazer o Concurso Público, assim que a Prefeitura tivesse os 50 mil. E assim o fiz.
Mas veio o senhor promotor, que me denunciou por descumprir a Lei. Como em Janduís tinha uma comarca, pensei: “Em Janduis, ainda existe Juiz! Mas este, também, me considerou culpado e empurrou o processo pra Natal. Porém, não perdi a fé na Justiça e me tranquilizei, refletindo, pensando no moleiro de Sans-souci: “Com certeza, ainda há Juizes em Natal! Eles compreenderão que contratei médicos e professores, emergencialmente, para salvar vidas e ensinar as nossas crianças e adolescentes! Ainda mais, eu fiz o Concurso, assim que a Prefeitura pode…”
Fui a Natal, no dia do julgamento. Uma desembargadora. Dois desembargadores. Dois advogados para tentar reverter um quadro que já tinha um veredicto firmado: “Não tem perdão pra quem contrata sem Concurso!” Que crime, hein? E um réu, eu, que estava alí, também, para julgar “quem ia me julgar”, numa lembrança do diplomata e dramaturgo russo Alexander Griboyedov, nascido em 1795, em sua peça histórica e satírica da sociedade russa de então: ‘Gore ot uma”.
Sem muita discussão e consideração, sem senso de razão e de lógica, sem tentar compreender como pessoas honestas e abnegadas conseguem guiar seu povo por anos a fio, com poucos recursos, sacrificando-se a si e as suas famílias, alimentando famintos, matando a sede, dando casa, protegendo, fomentando emprego e renda, mantendo os serviços públicos essenciais, a voz estridente e acusatória, que penetra a sua alma, estupra a sua consciência, o acusa de cometer crimes contra a legalidade, tira os seus direitos de cidadão (votar e ser votado), de contratar com o poder público e pagar uma multa absurda de 10 vezes maior que o salário recebido na época. Me veio à mente os anos de chumbo da ditadura militar que eu e toda a minha geração combatemos, derramando nosso sangue, gemendo nos calabouços das torturas e da morte.
Sai do Tribunal, não derrubado, nem vencido! Mas com uma pura certeza: “Sim, em Natal ainda há Juízes! Mas eles estão do outro lado da barricada: do lado dos que pretendem manter esta sociedade injusta, desigual, intolerante e desumana, submissos a Leis, que já não proporcionam os direitos das maiorias despossuídas, nem protegem os que não têm posses, nem riquezas!
Podem até tirar nossos direitos de votar e ser votado, podem até tirar as poucas economias que temos, podem até tentar tirar o direito que temos a uma velhice sossegada, mas não tirarão, jamais, a nossa capacidade de nos indignarmos contra os que nos ofendem e condenam, pois uma coisa é certa: existe uma Outra Verdade que nos liberta e nos faz lutar, existe uma Outra História que limpará os nossos nomes, existe uma Outra Justiça da qual nos orgulharemos!
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