Alto Comissariado da ONU demonstra preocupação com projeto de lei que trata da demarcação de terras indígenas no Brasil
Foto: Fábia Pessoa (CDHM)/Reprodução
O Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) oficializou em um relatório, nesta terça-feira (24), a preocupação com o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que prevê mudanças no reconhecimento da demarcação das terras e do acesso a povos isolados. De acordo com o documento, “o PL desafia o estabelecido na Constituição e as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil”.
De acordo com Jan Jarab, representante Regional para América do Sul do ACNUDH, o projeto de lei “está no contexto de uma agenda parlamentar anti-indígena” e insiste “na forma mais colonial de exploração e controle do ‘outro’, sendo uma evidente tentativa de neutralizar o artigo 231 da Constituição, referente aos direitos dos povos originários”.
“O processo de revisão das políticas indigenistas do país tem favorecido as ocupações ilegais das terras ancestrais, encorajado atos de violência contra suas lideranças e comunidades indígenas, e autorizado a destruição ambiental de seus territórios”, diz o documento.
O parecer foi solicitado em junho, pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, e entregue pessoalmente pelo representante regional para América do Sul do ACNUDH, Jan Jarab. O porta-voz da ONU manifestou preocupação com os ataques sofridos pelos povos indígenas no país e com o enfraquecimento de políticas que garantam a sua efetiva proteção.
Sobre o relatório
O estudo foi realizado por Deborah Duprat, jurista, subprocuradora-geral da República aposentada e especialista na temática relacionada aos direitos dos povos indígenas. No relatório entregue aos deputados, estão uma análise ampliada e a contextualização histórica de normas, regimes jurídicos, jurisprudências internacionais e iniciativas legislativas em curso que, segundo o texto, “violam o regime geral dos direitos dos povos originários no país”.
O relatório aponta que o PL 490 – que está na Câmara do Deputados sem data para ser votado – incorpora a chamada “tese do marco temporal”, estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Por esse critério, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da promulgação da Constituição de 1988.
A tese é considerada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) como contrária às normas internacionais de direitos humanos, especialmente a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
“A CIDH vê como grave e preocupante a situação dos povos e comunidades indígenas do Brasil. Aos registros de ameaça e invasão aos seus territórios por não indígenas, somam-se profundos desafios quanto à titulação e proteção de suas terras e, em inúmeros casos, os povos e comunidades indígenas se veem sem a necessária proteção do Estado”, diz o relatório.
Povos indígenas não são ouvidos
A ausência da consulta aos povos originários também é abordada no documento. Segundo o relatório, “não foi adotado pelo órgão indigenista brasileiro – a Fundação Nacional do Índio (Funai) – qualquer mecanismo que permitisse aos indígenas estarem cientes do conteúdo do debate a ser travado no âmbito do Poder Legislativo”.
“A discussão do PL 490 sem a participação dos povos indígenas afeta o seu direito mais fundamental: a autodeterminação”, diz Jan Jarab, representante Regional para América do Sul do ACNUDH.
O PL 490/2007 determina que é necessária a comprovação da posse da terra no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988 para que os indígenas tenham direito à área. Pela legislação atual, não há necessidade de comprovação de posse em data específica.
Hoje a demarcação exige a abertura de um processo administrativo dentro da Funai, com criação de um relatório de identificação e delimitação feito por uma equipe multidisciplinar, que inclui um antropólogo. Além da implementação do marco temporal, o projeto de lei proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas previamente, independentemente dos critérios e da reivindicação por parte dos povos indígenas interessados.
Outro ponto bastante criticado por organizações não-governamentais diz respeito a um trecho do PL que abriria espaço para uma flexibilização do contato com povos isolados, o que, segundo especialistas, poderia causar um perigo social e de saúde às comunidades.
O Capítulo VIII da Constituição de 1988 aborda normas específicas sobre “terras tradicionalmente ocupadas por índios”. Além de reconhecer os direitos originários sobre as mesmas, determina que a sua demarcação se dê de acordo com os usos, costumes e tradições de cada grupo, contemplando suas atividades produtivas, reprodução física e cultural, e a preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar.
Invasões de terras indígenas
De acordo com um levantamento divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados, em 2020, 263 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio que atingiram, pelo menos, 201 terras, de 145 povos, em 19 estados”. Em 2019, foram contabilizadas 256 ocorrências e, em 2018, 111 – o que demonstra um aumento de 137% em dois anos.
A Terra Yanomami é um exemplo do abandono pelo Estado. A maior reserva indígena do Brasil tem quase 10 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas, e parte da Venezuela. Cerca de 27 mil indígenas vivem na região em mais de 360 comunidades.
A área é alvo do garimpo ilegal de ouro desde a década de 1980. Mas, nos últimos anos, a busca pelo minério se intensificou, causando além de conflitos armados, a degradação da floresta e a ameaça à saúde dos indígenas.
A invasão do garimpo resulta na contaminação dos rios e na destruição da floresta. Isso reflete na saúde dos Yanomami, principalmente das crianças.
O número de casos de Covid-19 entre indígenas que habitam a região, também aumentou em razão da presença de garimpeiros. No ano passado, em apenas três meses, as infecções avançaram 250%. POR G1
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