Famílias de vítimas da Kiss organizam vaquinha e buscam apoio para acompanhar julgamento
Foto: Reuters
A fachada do prédio onde funcionou até o dia 27 de janeiro de 2013 a boate Kiss, no centro de Santa Maria, recebeu várias manifestações e cores nos últimos anos. Agora, a poucos dias do julgamento dos quatro réus que respondem pela tragédia, onde morreram 242 pessoas e mais de 600 foram feridas, uma frase ocupa quase toda a frente: 8 anos de impunidade.
Oito anos e dez meses depois do incêndio, famílias das vítimas enfrentam uma questão: a transferência do júri de Santa Maria para Porto Alegre, a 290 quilômetros.
“A gente não entende por que, se o caso aconteceu aqui, tem que ser julgado em outro lugar. Tem todas as provas materiais aqui, dá para visitar até”, diz Jacqueline Malezan, 57, que perdeu o filho Augusto no incêndio, se referindo ao prédio da boate, que segue similar à noite de 27 de janeiro de 2013.
O desaforamento do processo -troca de cidades -foi pedido primeiramente pela defesa de Elissandro Spohr, um dos sócios-proprietários da boate, e concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no fim de 2019.
Em setembro do ano passado, foi definido que os quatro réus deveriam ser julgados na capital -além de Spohr, serão julgados outro sócio, Mauro Hoffman, o vocalista da banda, Marcelo dos Santos, e o produtor Luciano Leão.
“O Tribunal de Justiça acolheu o pedido porque identificou que o ambiente em Santa Maria e o envolvimento das pessoas falecidas com possíveis jurados era evidente. A gente baseou isso numa pesquisa realizada na época que mostrava que 70% da cidade tinha algum tipo de perda na tragédia”, diz Jader Marques, advogado de Spohr.
Com o júri previsto para durar entre 10 e 15 dias, iniciando na próxima quarta-feira (1º), a preocupação dos familiares é com os custos em torno de estadia, alimentação e transporte na capital. Em Santa Maria, cidade da maioria das vítimas, as famílias dizem que poderiam ajudar com estadia.
Uma vaquinha foi criada com meta de R$ 50 mil -a campanha segue até o dia 30 de dezembro. Lançada no final de outubro e divulgada também em outdoors, a iniciativa ganhou apoio nas redes sociais de famosos, como o apresentador Fábio Porchat, a atriz Dira Paes e o ex-jogador de futebol, Paulo Roberto Falcão.
No texto, a AVTSM (Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria), formada por familiares, lembra que a tragédia atingiu 75 municípios, de cinco estados e dois países (Brasil e Paraguai) e que os familiares precisam de estrutura física e atendimento de saúde para acompanhar o processo.
A prefeitura de Santa Maria disponibilizou um ônibus para transportar familiares, sobreviventes e apoiadores à capital, além de colocar uma ambulância acompanhando todo o trajeto.
O CPERS (sindicato de professores do estado do RS) e o Exército ofereceram hospedagens e a prefeitura de Porto Alegre deve organizar espaços de acolhimento, transporte dentro da capital gaúcha e ao menos 90 alimentações diárias.
Com a aproximação da data, familiares têm lidado com lembranças e ansiedade. Alguns ainda não sabem se conseguirão acompanhar todo o processo presencialmente, enquanto outros têm medo de que, se não garantirem presença, seus filhos não serão representados diante do júri.
“Agora que está chegando perto é claro que a gente está diferente. O psicológico está…O meu está bem fora da casinha. Você está vivendo, tem uma ‘vida normal’, mas na cabeça está o julgamento. Eu estou conversando contigo, com qualquer pessoa, estou fazendo alguma coisa, mas aquele julgamento parece que está dentro de mim”, explica Marise Dias de Oliveira, 58, mãe de Lucas.
O filho trabalhava em uma loja de artigos gauchescos e foi à boate comemorar o aniversário da namorada. “Parece que não é uma coisa concreta isso que a gente vive, por mais que já faça quase nove anos, agora parece que juntou tudo. Porque esses dias, a gente sabe que vai ser falado tudo novamente”, diz ela.
“Fomos em quase todas as oitivas. O problema não é ouvir a verdade que a gente sabe, o problema é ouvir as mentiras que vão falar, as distorções que vão ter lá. Aí que a gente fica alterado”, avalia Jacqueline, uma das mães que quis entrar na Kiss para conhecer o local onde o filho morreu, tentando salvar outras pessoas.
“Pela mídia, eu acompanhava”, conta Rosane Pendeza Callegaro, 58, mãe de Ruan. Ela ainda não sabe se irá a Porto Alegre. “Como vai ser enfrentar lá? Como vai ser olhar para as pessoas? Eu só vou saber quando chegar a hora”.
É no apoio mútuo, entre encontros, vigílias, jantares, que os familiares têm enfrentado, além da saudade, críticas por seguirem falando da dor da perda e por pedirem justiça. Vários familiares contam terem ouvido diretamente ou lido comentários de desconhecidos afirmando que, se os filhos estivessem na igreja, não em uma boate, não teriam morrido.
“O que não queremos é que a defesa use argumentação falsa de que a culpa é do outro”, diz Paulo Carvalho, pai de Rafael.
“Nove anos, praticamente. É muito tempo. Nenhum resultado vai trazer de volta os nossos filhos. A gente não quer que aconteça com outras pessoas. Essa é nossa luta. O meu filho era sonhador, ele sonhava com futuro. O que nós temos? Nada”, diz Rosane. Ruan também era filho único.
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